Religião: Deus de loteria
Acreditar que o sucesso financeiro vem de Deus é aceitar um deus cruel que condena à pobreza metade da população mundial.
Frei Betto
Escritor e religioso dominicano
“Para brasileiro, sucesso financeiro vem de Deus.” Esta a manchete da Folha de S. Paulo no dia de Natal. Segundo pesquisa Datafolha, 88% dos pesquisados, ou seja, nove entre dez brasileiros, acreditam que a fé em Deus influi no aumento da renda pessoal.
Essa fé no deus que traz dinheiro é compartilhada por 90% das pessoas que têm religião; 70% das que se declaram “sem religião”; e 23% dos ateus… E o mais curioso, 1/3 dos entrevistados que cursaram apenas o ensino fundamental, e 28% dos que ganham no máximo dois salários mínimos por mês, concordam com esta afirmação: “As pessoas pobres, em geral, não têm fé em Deus e, por isso, não conseguem sair dessa situação.”
Pobre Deus! Seu santo Nome é em vão invocado até para justificar a desigualdade social. “Se você é pobre, basta um pouco mais de fé e, logo, a sua situação financeira haverá de melhorar.” Ideia que peca por dois equívocos: atribuir a Deus a causa da desigualdade social, e desqualificar a fé de quem se encontra na pobreza.
Essa teologia da prosperidade já vigorava no tempo de Jesus. E foi por ele duramente condenada. Os fariseus atribuíam os males humanos ao pecado. Se uma pessoa tinha uma doença, isso era culpa de seus pecados ou dos pecados de seus familiares, conforme relata o capítulo nove do Evangelho de João.
Jesus se posicionou contra essa falsa teologia e demonstrou que Deus não quer ninguém doente, como também não faz da pobreza um castigo por falta de fé. Se há miséria, pobreza e doença, temos que buscar as causas aqui na Terra, e não no Céu. Elas resultam dos males que nós, humanos, provocamos, como a acumulação privada da riqueza em mãos de poucos, em detrimento da maioria. E isso não corresponde à vontade divina; pelo contrário.
Isto sim é “ópio do povo”: culpar Deus pelas injustiças humanas. Ora, a Bíblia registra, na primeira página do livro dos Gênesis, que Deus nos criou para viver no paraíso. E ao terminar a obra da Criação “viu que tudo era muito bom”.
Se agora muita coisa anda ruim não é porque Deus, como escreveu Beckett na peça Fim de jogo, criou apressadamente o mundo em apenas seis dias, quando nem a confecção de uma roupa pode ficar perfeita em tão curto tempo… Nós é que abusamos de nossa liberdade e alteramos o projeto da Criação ao introduzir os frutos amargos do egoísmo: opressão, exclusão, preconceito e discriminação.
Por que, então, muitos atribuem a Deus terem se tornado um pouco menos pobres? Porque ao ingressar em uma Igreja, deixam de beber, fumar, jogar, frequentar bares e danceterias. Aprendem a poupar, adotam vida mais regrada. Isso é o suficiente para o assalariado melhorar a sua qualidade de vida.
Acreditar que o sucesso financeiro vem de Deus é aceitar um deus cruel que condena à pobreza metade da população mundial. Que culpa tem uma criança que nasce na miséria? Ora, a miséria de muitos existe porque, do outro lado do apartheid social, a riqueza de poucos engorda os cofres dos bancos.
Até um cego sabe que muitas fortunas nada têm de abençoadas. Decorrem da corrupção (vide a Lava Jato), da opressão (lucra-se muito e paga-se pouco aos funcionários), da falta de direitos básicos (o filho do pobre não tem acesso à educação de qualidade propiciada ao filho do rico), e até da exploração da fé alheia (padres e pastores que, em nome de Deus, enriquecem graças aos donativos dos fiéis).
Jesus não veio fundar uma religião ou uma Igreja. Veio semear entre nós um novo projeto civilizatório, baseado na partilha dos bens da Terra e dos frutos do trabalho humano, e no amor. Veio arrancar a venda que nos cobre os olhos e impede que reconheçamos as causas da miséria e da pobreza. Veio anunciar o Reino de Deus dentro do reino de César. Por isso foi assassinado na cruz, por associar Deus como “Pai Nosso” (de todos, e não somente meu) na medida em que somos capazes de partilhar o “Pão Nosso” (bens e direitos necessários para que “todos tenham vida e vida em abundância”).
Crucifica Jesus pela segunda vez quem, em nome de Deus, legitima a desigualdade social e dela tira proveito para enriquecer. Este deus de loteria não encontra lugar na Bíblia.
Fonte: domtotal.com